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Por Adriano Tavares da Silva – Procurador-geral do IASC*.

 

“O advogado exerce função social, pois ele atende a uma exigência da sociedade. Basta que se considere o seguinte: sem liberdade, não há advocacia. Sem a intervenção do advogado, não há justiça, sem justiça não há ordenamento jurídico e sem este não há condições de vida para a pessoa humana. Logo, a atuação do advogado é condição imprescindível para que funcione a justiça. Não resta, pois, a menor dúvida de que o advogado exerce função social.”

Ruy de Azevedo Sodré, “A ética profissional e o estatuto do advogado”.

 Independentemente da posição teórica que se assuma, é forçoso concluir que o fenômeno jurídico é fortemente influenciado pela historicidade, que, não surpreendentemente, é igualmente característica da conditio humana[1]. Destarte, qualquer abordagem que ignore “as condições históricas da forma jurídica” [2], como diria Pachukanis, acabará por flutuar no superficial.

Essas considerações que, inicialmente, poderiam ser vistas como triviais, na verdade apontam para elucidações férteis. Uma delas é lembrar-nos de que todos os direitos não estiverem “sempre aí”, não são entes naturais, existentes ad aeternum. Em verdade, ao contrário, eles foram desenvolvidos após lutas sociais que, a bem da verdade, forçaram a sua criação.

Isso é ainda mais relevante no Brasil, que, após intensas e contínuas lutas sociais, cristalizadas em certa medida na Constituição Cidadã de 1988, rompe com a forma autoritária de se governar e relacionar-se com os cidadãos, criando um novo paradigma jurídico fundado no Estado Democrático de Direito.

Para o sustentáculo desse edifício jurídico, o Direito confere papéis[3] a agentes que são imbuídos do mister de defender a ordem jurídica. Exemplo disso é o advogado, que, nos ditames do artigo 133 da carta magna, é considerado “indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.

Consequência disso tudo é que as violações das prerrogativas conferidas ao advogado, enquanto defensor da ordem jurídica, dos direitos e das garantias fundamentais conferidas a todo e qualquer cidadão, é, em última análise, uma violação do próprio sistema político centrado no princípio democrático.

E, desafortunadamente, não são raros os casos em que o advogado é vislumbrado como um óbice, um empecilho, sofrendo uma série de violações das suas prerrogativas. Exemplo disso não faltam.

Vislumbre-se o noticiário e encontrar-se-los-á. Um advogado, verbi gratia, enquanto exercia o seu munus público, foi processualmente constrangido a participar de uma audiência, não obstante estivesse internado em hospital. Teve, portanto, de realizá-la diretamente da cama de um hospital [4].

Noutro caso, semelhante ao supracitado, o advogado, hospitalizado por conta de uma cirurgia, teve seu pedido de adiamento da audiência adiado e, somente com a intervenção da OAB de Santa Catarina, teve seu pleito deferido [5].

Ainda em Santa Catarina, noutro caso de violação das prerrogativas, o procurador teve sua conversa privada com seu cliente indevidamente gravada pelo Juiz. Inclusive, tal conversa foi juntada aos autos, tornando-se de acesso público (tanto é assim que foi divulgada na internet).

No Distrito Federal, em outubro de 2020, outro advogado sofreu violação de suas prerrogativas. Neste caso, foi preso o advogado, enquanto no exercício da função, sob a justificativa de que “não calou a boca”. Não fosse suficiente, algemaram suas mãos e pernas [6].

Poder-se-ia seguir indefinidamente elencando casos semelhantes. Eles servem, contudo, para demonstrar um modus operandi que não se coaduna com a ordem jurídica vigente, tampouco o status civilizacional que exige. Um modus operandi que obstaculiza a atuação do advogado e, reflexivamente, atinge de modo funesto o sistema democrático e seus princípios.

Daí que, como nos lembra Michael Polanyi, “a selvageria está sempre à espreita entre nós, mas ela só pode se manifestar em grande escala quando paixões morais insurgentes destroçam primeiro os controles da civilização” [7].

É o que, em outras palavras, e igual acerto, afirma Cezar Brito:

“A história afirmou o fundamento de que a busca da inviolabilidade profissional apenas possui razão de ser — e objetiva assegurar — a defesa do cidadão, que deve ser altiva, sem peias, é dizer, livre. No sistema jurídico contemporâneo, pautado pela proteção dos fundamentais direitos da pessoa humana, o direito de defesa é base e fundamento do Estado democrático de Direito, fruto de uma longa, lenta e penosa construção humana, de cujos benefícios, testados e atestados em séculos de história, não se pode abrir mão” [8].

Instrumentos jurídicos para que essas prerrogativas sejam respeitadas existem e, recentemente, foram inclusive aumentados. A Lei nº 13.689 de 2019, por exemplo, que tratou do abuso de autoridade, inovou legalmente ao trazer uma série de tipos penais que trazem maior proteção aos direitos e garantias fundamentais do cidadão e, consequentemente, devem facilitar a sua atuação.

Assim, de acordo com o referido diploma legal, assim como tendo-se em vista o que dispõe o estatuto da advocacia, constituem abuso de autoridade as seguintes condutas:

  1. a) violar o escritório ou local de trabalho do advogado, seus instrumentos de trabalho, sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica ou telemática relativas ao exercício da advocacia;
    b) impedir que o advogado comunique-se pessoal e reservadamente com seus clientes, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis; ou ainda impedir que o advogado comunique-se com o seu cliente pessoal e reservadamente antes da audiência judicial, ou sentar-se ao seu lado e com ele comunicar-se durante a audiência; c) lavrar auto de prisão em flagrante do advogado, por motivo ligado ao exercício da advocacia, sem a presença de representante da OAB;
  2. d) deixar de instalar o advogado em sala de Estado maior, quando recolhido preso antes de sentença transitada em julgado;
    e) negar ao advogado acesso aos autos de investigação preliminar ou termo circunstanciado, inquérito ou qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias;
    f) prosseguir com o interrogatório de pessoa que tenha optado por ser assistida por advogado ou defensor público, sem a presença de seu patrono [9].

 

Esse apenas um dos instrumentos que reforçam tudo o que aqui já foi dito e deixam claro o papel inegociável do advogado enquanto sustentáculo do regime democrático e das garantias e direitos que a ele são inerentes.

Apesar dessa regulamentação, contudo, a lei é tímida em sua aplicação, ficando os advogados, defensores dos pilares da democracia, sujeitos a uma série de arbitrariedades, que devem ser combatidas de forma infatigável.

É imperioso, portanto, unir-se em prol da defesa das prerrogativas do advogado, sendo estas uma das salvaguardas irrenunciáveis do Estado Democrático de Direito e de seus corolários: os direitos e garantias fundamentais, direitos conferidos a todos os cidadãos.

Ignorar essa causa, não dando a devida atenção a essas violações, é abdicar, de maneira odioso, de direito e garantias longa e duramente conquistados, que nos levaram ao status civilizacional em que estamos e que, sem os quais, estaríamos jogados à barbárie.

Disse-se no início do texto: violação das prerrogativas ou democracia. Poder-se-ia dizer com igual acerto: valorização da advocacia ou barbárie. É nosso papel, destarte, enquanto operadores do direito, e como cidadãos, combater as violações sistemáticas que recorrentemente somos informados e com as quais, de modo algum, podemos aquiescer.

 

Referências:

1 – STEIN, Ernildo. Compreensão e finitude: estrutura e movimento da interrogação heideggeriana, 2. ed.  Ijuí: Editora Unijuí, 2016. p. 37.

2 – PACHUKANIS, Evguiéni. B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 80.

3  – NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WWF Martins Fontes, 2019. p. 9.

4 –https://www.conjur.com.br/2020-nov-12/advogado-participa-audiencia-cama-hospital

5 – https://www.conjur.com.br/2021-jan-28/atuacao-oab-advogado-hospitalizado-adiar-audiencia

6 – https://oabdf.org.br/noticias/oabnamidia/delegado-algema-maos-e-pes-de-advogado-que-nao-calou-a-boca-jusdecisum/

7 – POLANYI, Michael. A lógica da liberdade. Rio de Janeiro: Top Books, 2003. p. 27.

8 – BRITTO, Cezar. A inviolabilidade do direito de defesa. Belo Horizonte: Del Rey, 2011. p. 11.

9 – https://www.conjur.com.br/2020-dez-04/violacao-prerrogativas-advocacia-instrumentos-resposta

*Adriano Tavares da Silva, é advogado, sócio fundador do escritório Tavares & Advogados Associados, mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa, especialista em Direito Público pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (CESUSC), Conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina e Procurador Geral do Instituto dos Advogados de Santa Catarina.

 

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