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BREVES COMENTÁRIOS SOBRE A CAUSA DE PEDIR E O PEDIDO NAS AÇÕES ENVOLVENDO O CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO (RMC).

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Por Hélio Ricardo Diniz Krebs é advogado, Presidente da Comissão de Direito Bancário do Instituto dos Advogados de Santa Catarina – IASC (2018-2020; 2020-2023)*.

Nos últimos anos foram ajuizadas milhares de ações pelo país, cuja controvérsia principal repousa na contratação do cartão de crédito com reserva de margem consignável, comumente denominadas de ações do cartão de crédito “RMC”.

Apenas no site do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), em uma rápida busca pelo termo “RMC”, encontram-se nada mais, nada menos, que 53.539 recursos de apelação já julgados, dos quais 53.310 são provenientes das Câmaras de Direito Comercial e 229 das Câmaras de Direito Civil, que são órgãos fracionários com competências distintas.

Inclusive, em razão da multiplicidade de processos envolvendo a matéria, o Grupo de Câmaras de Direito Comercial, recentemente, instaurou Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) nº 5040370-24.2022.8.24.0000 para resolver controvérsia entre os órgãos fracionários que o compõem, quanto à tese atinente ao “dano moral presumido (ou não) na hipótese de invalidade da contratação de cartão de crédito com reserva de margem consignável em benefício previdenciário” para resolver controvérsia entre os órgãos fracionários que o compõem quanto à tese atinente ao dano moral presumido (ou não) na hipótese de invalidade da contratação de cartão de crédito com reserva de margem consignável em benefício previdenciário”. Na mesma linha, o Grupo de Câmaras de Direito Civil instaurou o IRDR nº 5011469-46.2022.8.24.0000 para dirimir controvérsia sobre se “É (não é) presumido o dano moral quando há o desconto indevido em benefício previdenciário decorrente da inexistência da efetiva contratação do empréstimo consignado (fato negativo)”.

Com efeito, como se verá com mais detalhes adiante, a questão da competência para o julgamento dessas causas é uma das mais nebulosas envolvendo a matéria, tendo dado causa à instauração de diversos conflitos de competência suscitados entre juízos de 1ª grau e também entre as Câmaras de Direito Civil e Comercial. Em razão disso, a Câmara de Recursos Delegados do TJSC, com o objetivo de dirimir tais controvérsias, editou o Enunciado VI, que assim dispõe:

Enunciado VI: A distribuição de competências entre unidades jurisdicionais de Direito Civil e Bancário observa, preponderantemente, o critério ex ratione materiae, definindo-se a partir da leitura da causa de pedir e do pedido. Em se tratando de ações envolvendo a temática dos Cartões de Crédito com Reserva de Margem Consignável – RMC: (I) se a causa de pedir e o pedido envolverem a inexistência de relação jurídica por total ausência de contratação, a competência recai sobre as unidades de Direito Civil, não havendo incursão em matéria de índole bancária; e (II) se, por outro lado, a causa de pedir e o pedido abrangerem situações fático-jurídicas que levaram à subscrição de pacto bancário diverso do pretendido, tendo-se por indevida a reserva de margem consignada no lugar do empréstimo objetivado, desponta a competência das unidades de Direito Bancário.

Como se pode observar, a causa de pedir e o pedido formulado nas referidas ações, tratam-se da questão central a ser delineada para fins de fixação da competência, tanto em 1º como em 2º grau de jurisdição. Em suma, se se trata de contratação e utilização do cartão de crédito RMC mediante vício de consentimento (ou seja, o consumidor pretendia contratar empréstimo consignado comum e o banco efetivou a contratação do cartão de crédito RMC), a competência seria da Unidade Estadual de Direito Bancário em 1º grau e das Câmaras de Direito Comercial em 2º grau. Por outro lado, se a ação é embasada na alegação de ausência de contratação, a competência seria das varas cíveis em 1º grau e das Câmaras de Direito Civil em 2º grau.

Ocorre que, muito embora a leitura do mencionado Enunciado VI da Câmara de Recursos Delegados possa sugerir uma certa facilidade na identificação da causa de pedir e dos pedidos nas ações envolvendo o cartão de crédito RMC, a realidade é diametralmente oposta.

Isso porque, não raras as vezes, ou até mesmo a maioria dos casos, possuem circunstâncias fáticas (muitas vezes aferíveis somente após a apresentação de contestação e documentos pelo banco) que acabam por englobar ambas as hipóteses formuladas como critério para fixação da competência jurisdicional.

Sem qualquer pretensão de esgotar a matéria é sobre tal problemática que iremos tratar no presente artigo, uma vez que, para muito além de um critério de fixação de competência, a correta identificação, especialmente, da causa de pedir, mas também do pedido, nas ações envolvendo o cartão de crédito RMC, trata-se de questão relevantíssima para a própria análise da (i)licitude da contratação.

Pois bem. Comumente, a causa de pedir das ações envolvendo a contratação e utilização do limite de crédito do cartão de crédito consignado (RMC) consiste em, ao menos 4 hipóteses, quais sejam:

  1. a) hipóteses de “vício de consentimento”, em que há a efetiva assinatura de um contrato prevendo a contratação do cartão de crédito com margem consignável:

a.1) o consumidor busca realizar um empréstimo consignado comum (cujo pagamento se dará por meio de parcelas fixas e por tempo determinado), porém, a instituição financeira, muito embora informe que está concedendo um empréstimo nessas condições, acaba realizando a contratação tão somente de um cartão de crédito com margem consignável (RMC), em condições muito mais onerosas ao consumidor. Para “camuflar” a operação, de modo a fazer o consumidor acreditar que contratou um empréstimo consignado, a instituição financeira realiza um depósito via TED na conta do consumidor e se defende em juízo alegando que referida TED trata-se de um saque (cognominado de “tele-saque” pelos bancos) realizado pelo consumidor, com seu cartão de crédito com reserva de margem consignável, mesmo se tratando de operações completamente distintas. Em outras palavras, saque é uma operação e TED é outra muito diversa;

a.2) o consumidor busca realizar um empréstimo consignado comum, porém, além de fornecer o empréstimo nessas condições, a instituição financeira insere na contratação o cartão de crédito com margem consignável, mesmo sem jamais ter sido solicitado pelo consumidor, sendo que o restante da operação se dá nos mesmos moldes descritos no item “a.1” acima. Neste caso, a contratação de empréstimo e de cartão de crédito consignado no mesmo instrumento configura venda casada, proibida pelo art. 39, I, do CDC, conforme entendimento que vem sendo adotado pela 2ª Câmara de Direito Comercial do Eg. TJSC[1];

  1. b) hipótese de fraude na contratação, mediante a apresentação de contrato com falsa assinatura do consumidor, por vezes “recortada/copiada” de outro documento e “colada” no contrato fraudulento, que é convertido em PDF e apresentado em juízo: trata-se de fato público e notório que os empréstimos consignados, em sua maioria, são contratados por telefone – após insistentes ligações das instituições financeiras – e muito dificilmente possuem um contrato físico ou mesmo digital para cada uma das operações contratadas (seja de empréstimo consignado comum, seja de depósito/TED que os bancos chamam de “tele-saque” para justificar a contratação e utilização do cartão RMC), cujas cláusulas tenham sido previamente informadas ao consumidor.

Ocorre que, não são raros os casos em que as instituições financeiras, quando instadas em juízo para apresentar tais contratos, apresentam cópias com falsa assinatura do consumidor (muitas vezes “recortada/copiada” de outro documento e “colada” no contrato fraudulento, que é convertido em PDF e apresentado em juízo), bem como seus documentos pessoais.

Cumpre ressaltar, no entanto, que, tanto a assinatura, como os documentos pessoais do consumidor, normalmente chegam ao poder da instituição financeira por meio de suas agências/promotoras de crédito (as quais representam/prestam serviços para várias instituições financeiras  e cujos funcionários sofrem extrema pressão para bater metas e receber comissões) que, por sua vez, tiveram acesso a tais documentos e assinatura quando da contratação de um empréstimo consignado comum, que pode ter ocorrido meses ou até mesmo anos antes da suposta contratação do malsinado cartão de crédito consignado.

A multiplicidade de casos no país, sob tais circunstâncias, levou o Eg. STJ a firmar a seguinte tese, quando do julgamento do Recurso Especial Repetitivo nº 1.846.649/MA (TEMA 1.061): “Na hipótese em que o consumidor/autor impugnar a autenticidade da assinatura constante em contrato bancário juntado ao processo pela instituição financeira, caberá a esta o ônus de provar a sua autenticidade (CPC, arts. 6º, 368 e 429, II)“.[2]

O que se quer dizer com tudo isso é que, o fato de a instituição financeira apresentar uma mera cópia de um contrato em PDF, com a assinatura do consumidor (mesmo que idêntica à original, porém, possivelmente “recortada/copiada” de outro documento) e de seus documentos pessoais, especialmente quando impugnadas pelo consumidor, jamais poderia ser tido como suficiente para considerar-se lícita a contratação do cartão de crédito consignado e, muito menos, a utilização do respectivo limite, mediante saques complementares;

  1. c) por último, tem-se a hipótese cuja atenção do leitor buscamos chamar com este artigo, qual seja, a de fraude na contratação e nulidade absoluta do negócio jurídico, mesmo havendo a assinatura de um contrato de cartão de crédito RMC: meses ou anos depois da assinatura do contrato de cartão de crédito RMC (com ou sem a utilização inicial do limite, mediante o denominado “tele-saque”), a instituição financeira oferece (na maioria das vezes por telefone) um empréstimo consignado comum ao consumidor, que o aceita sem assinar qualquer contrato e, como o dinheiro entrou em sua conta por meio de uma TED, acredita fielmente que o combinado foi realmente cumprido pela instituição financeira. Porém, posteriormente, o consumidor descobre que, em vez de um empréstimo consignado comum, a instituição financeira fraudulentamente utilizou o limite do cartão de crédito RMC para fazer a TED e, em juízo, se defende alegando que referida TED foi um “tele-saque”.

Nesse caso, portanto, embora se tenha um contrato de cartão de crédito RMC devidamente assinado, as utilizações posteriores do limite de crédito (denominadas “saques complementares), mediante os malsinados “tele-saques”, não se trataram de contratações maculadas por vício de consentimento, mas sim, mediante fraude, o que torna o negócio jurídico inválido e absolutamente nulo.

Essa é a hipótese que, embora muito comum e extremamente relevante, vem sendo reiteradamente desprezada na análise da (i)licitude da contratação e utilização do cartão de crédito RMC.

A importância e urgência de um olhar mais aprofundado sobre a questão, repousa no fato de que, mesmo sendo rejeitada a tese de vício de consentimento quando houver um contrato do cartão de crédito consignado devidamente assinado pelo consumidor, tal circunstância jamais poderia implicar em “carta branca” às instituições financeiras para se ter como válidos todos os demais “saques complementares”, cuja contratação/solicitação não restou comprovada e/ou devidamente esclarecida ao consumidor. Em outras palavras, os “saques complementares” podem não ter sequer sido solicitados pelo consumidor ou então sido oferecidos pela instituição financeira como um empréstimo consignado comum e assim aceitos pelo consumidor.

Nesses casos, portanto, pode-se estar diante de um caso cuja tese de vício de consentimento seja rejeitada em relação à contratação do cartão de crédito RMC – e, quiçá, a um ou alguns dos saques complementares, desde que comprovadamente oferecidos de forma transparente pela instituição financeira e aceito de forma inequívoca pelo consumidor como um saque e não um empréstimo consignado comum -, ao mesmo tempo em que a tese de nulidade absoluta do negócio jurídico (comumente denominada de “fraude”) seja acolhida em relação aos saques complementares, cuja contratação não tenha sido efetivamente comprovada.

Sendo assim, mostra-se de suma importância que a petição inicial da ação judicial visando, entre outros pedidos, à declaração de nulidade do negócio jurídico contenha pedido, ainda que subsidiário, voltado ao reconhecimento da nulidade absoluta dos malsinados “saques complementares”, cujo reconhecimento poderá impactar substancialmente no êxito da demanda, seja em relação à restituição de valores e/ou à indenização por danos morais.

Por fim, diante dessas e tantas outras circunstâncias que se observam caso a caso, pede-se vênia ao leitor para encerrar esse breve artigo com as seguintes indagações, cujas respostas, se bem refletidas à luz da Constituição, muito provavelmente conduziriam esse atualíssimo “litígio em massa” para um desfecho favorável aos consumidores, cujos direitos, nos termos do art. 170, V da CF e da jurisprudência do STF[3] são, de fato, “direitos fundamentais”: 1º) É razoável supor que milhares de consumidores utilizariam limite de crédito de cartão de crédito, em valores muitas vezes bem superiores aos seus rendimentos mensais, se soubessem que teriam que pagar a quantia total recebida logo no mês seguinte, sob pena de sujeitarem-se aos juros altíssimos dessa modalidade de crédito? 2º) Por que razão as instituições financeiras adotam a prática de insistentemente oferecer (geralmente por telefone) a concessão de crédito mediante o malsinado “tele-saque” somente para o cartão de crédito RMC, enquanto que nos cartões de crédito comuns o saque de valores somente é admitido – e se admito – quando o consumidor realiza (“conscientemente”) tal operação no caixa eletrônico? 3º) Qual o fundamento jurídico para se admitir que uma TED seja considerada um “saque” com cartão de crédito que jamais sequer foi entregue e/ou utilizado pelo consumidor, mesmo que a lei não preveja a utilização do cartão de crédito RMC mediante “tele-saque”, que se trata de operação completamente diversa de um saque (este sim previsto em lei)? O simples fato de as instituições financeiras alegarem que referida TED trata-se de um “tele-saque” é suficiente para transformar a natureza jurídica da TED em saque?  4º) o fato de o consumidor assinar um contrato de cartão de crédito RMC (utilizando-o ou não, para compras e/ou saques em caixas eletrônicos) é suficiente para concluir que todos os “tele-saques” (normalmente oferecidos como empréstimo consignado comum e por telefone) realizados no decorrer dos anos foram conscientemente contratados pelos consumidores a título de saque do cartão de crédito RMC? 5º) O problema da judicialização em massa, dos casos envolvendo o cartão de crédito RMC, não seria resolvido se o entendimento jurisprudencial fosse uníssono no sentido de admitir-se como saque do cartão de crédito RMC apenas aquela operação que efetivamente se trata de saque, ou seja, o saque feito pelo consumidor no caixa eletrônico ou na boca do caixa? Se o entendimento jurisprudencial fosse consolidado no sentido de considerar ilegal o denominado “tele-saque” – o que de fato é, pois inexiste previsão legal que o autorize -, não seria crível supor que as instituições financeiras cessariam com a prática de oferecer empréstimo consignado comum e, na realidade, impor ao consumidor a contratação e utilização do cartão de crédito RMC? Nesse caso não haveria uma redução drástica no número de ações judiciais, com benefícios à toda sociedade e, em especial, ao Sistema de Justiça?   

 

*Hélio Ricardo Diniz Krebs é advogado, Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Presidente da Comissão de Direito Bancário do Instituto dos Advogados de Santa Catarina – IASC (2018-2020; 2020-2023), Secretário-Geral da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SC.

[1] TJSC, Apelação n. 5000323-96.2021.8.24.0079, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Robson Luz Varella, Segunda Câmara de Direito Comercial, j. 15-06-2021.

[2] STJ, REsp nº 1.1846.649/MA, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, 2ª Seção, j. 24.11.2021, DJe 07.12.2021.

[3] STF, ADI 2591, Relator:  Min. Carlos Velloso, Relator p/ Acórdão:  Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, julgado em 07/06/2006, DJ 29-09-2006.

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