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A excepcional proteção da Lei nº 8.009/90 ao bem de família alienado fiduciariamente em garantia

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Por Hélio Ricardo Diniz Krebs – Presidente da Comissão de Direito Bancário do IASC.

Vigora entre a maioria dos operadores do Direito a ideia de que a proteção legal ao bem de família não alcança o imóvel dado em garantia de alienação fiduciária. Tal entendimento dá-se, em suma, por dois fundamentos: 1º) para aqueles que identificam o instituto com a mera “impenhorabilidade” do bem de família, em vez da conotação mais ampla de “proteção ao bem de família”, a Lei nº 8.009/90 não alcançaria o imóvel alienado fiduciariamente, porque a execução da garantia se faz extrajudicialmente, de modo que não há se falar em penhora e, portanto, em impenhorabilidade; 2º) como na alienação fiduciária em garantia a propriedade (fiduciária) do bem é transferida ao credor fiduciário, o bem deixaria de integrar o patrimônio do devedor fiduciante e, por consequência, não mais poderia mais ser caracterizado como bem de família.

No presente artigo buscar-se-á demonstrar não apenas que tais fundamentos partem de premissas equivocadas, mas também expor uma das excepcionalíssimas hipóteses em que a proteção da Lei nº 8.009/90 (Lei da Proteção ao Bem de Família) deve se aplicar também ao bem de família alienado fiduciariamente em garantia, tal como recentemente decidido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

Primeiramente, cumpre ressaltar que não se desconhece o entendimento exposto nos acórdãos dos Recursos Especiais ns. 1.560.562/SC[1] e 1.677.015/SP[2] – ambos da 3ª Turma do STJ e de relatoria da Ministra Nancy Andrighi – que reconheceram a inaplicabilidade da Lei nº 8.009/90 sobre imóveis alienados fiduciariamente e que vêm sendo utilizados como precedentes para outros tribunais. Contudo, o fundamento principal dos referidos julgados (ratio decidendi) – assim como do recente acórdão do Recurso Especial nº 1.595.832/SC, da 4ª Turma do STJ e de relatoria do Exmo. Min. Luis Felipe Salomão – está na necessidade de vedar o comportamento contraditório do “devedor” que oferece em garantia o bem de família para auferir benefício próprio ou em proveito da entidade familiar e, em seguida, postula pela nulidade da garantia sob o fundamento de se tratar de bem de família, o que atentaria contra a “boa-fé e a eticidade, ínsitas às relações negociais”.

Nos casos mencionados, entretanto, o alienante (terceiro garantidor) ofertou em garantia seu único imóvel residencial a um contrato de mútuo favorecedor de pessoa jurídica da qual era o único sócio (REsp nº 1.560.562/SC) ou sócio majoritário (REsp nº 1.677.015/SP), de modo que tal situação não contaria com a proteção irrestrita do bem de família, nos termos de uma das correntes jurisprudenciais do STJ. Já no caso do Recurso Especial nº 1.595.832/SC, tratou-se de contrato de mútuo pactuado pela própria parte autora da ação (devedora fiduciante), em que os respectivos valores foram destinados para a construção do imóvel residencial considerado como bem de família e dado em alienação fiduciária em garantia, razão pela qual não havia sequer como cogitar a hipótese de que os valores objeto do mútuo não teriam revertido em proveito da devedora fiduciante ou de sua entidade familiar.

No entanto, existem determinados casos que possuem peculiaridades capazes de afastar a aplicação de tal entendimento. Isso porque, diferentemente dos casos analisados nos mencionados julgados, o devedor fiduciante que presta a garantia (terceiro garantidor) pode não auferir qualquer benefício próprio ou que seja convertido em proveito de sua entidade familiar, o que pode ocorrer, por exemplo, quando o valor do empréstimo/mútuo concedido seja todo destinado ao capital de giro de pessoa jurídica da qual sequer faz parte do quadro societário. E é dessa hipótese que tratará o presente artigo, embora as conclusões daqui extraídas possam se aplicar a casos semelhantes.

Não se olvida, também, que no julgamento dos referidos Recursos Especiais ns. 1.560.562/SC e 1.677.015/SP, o voto da Relatora, Ministra Nancy Andrighi, deixou consignado, ainda que de passagem, o seguinte fundamento secundário: Vale ainda lembrar que a própria Lei 8.009⁄90, com o escopo de proteger o bem destinado à residência familiar, aduz que o imóvel assim categorizado não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, mas em nenhuma passagem dispõe que tal bem não possa ser alienado pelo seu proprietário.

Destarte, não se pode concluir que o bem de família legal seja inalienável e, por conseguinte, que não possa ser alienado fiduciariamente por seu proprietário, se assim for de sua vontade, nos termos do art. 22 da Lei 9.514⁄97”.

Tal fundamento, contudo, revela-se por demais simplório e decorrente de uma leitura puramente fria da lei, de modo que desconsidera os fins sociais a que ela se destina, tal como determina a interpretação teleológica ou finalística, prevista no art. 5º da LINDB, ao dispor que “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Conforme se verá adiante, especialmente para os casos como o ora em estudo, a interpretação da Lei nº 8.009/90 deve ser realizada com os olhos voltados ao direito à moradia, inserido no art. 6º da CF pela EC 26/2000.

Por outro, não se mostra razoável e nem mesmo correto comparar a hipótese da venda/alienação normal de um bem de família (que na maioria dos casos será realizada justamente para comprar outro bem de família), com a alienação do bem de família para fins de constituir garantia fiduciária, até mesmo porque o próprio legislador, por meio da Lei nº 13.043/14, alterou de modo relevante o art. 1.367 do Código Civil para inserir em sua parte final a ressalva de que “a propriedade fiduciária em garantia […] não se equipara, para quaisquer efeitos, à propriedade plena de que trata o art. 1.231.

Pois bem. O art. 1º da Lei nº 8.009/90 dispõe que O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei”.

Como se percebe claramente, em especial pela conjunção “e” (entre impenhorável e não responderá), o objetivo da lei não é apenas proteger o bem de família contra a penhora e sim protegê-lo para que não responda por qualquer tipo de dívida (ressalvadas às exceções do art. 3º). Ora, o fato de a alienação fiduciária em garantia transferir a propriedade resolúvel do imóvel ao credor fiduciário – o que se trata de uma anomalia jurídica criada pelo legislador tão somente para possibilitar a execução extrajudicial pelo credor fiduciário que, em geral, são instituições financeiras – não possui o condão de retirar-lhe a real natureza jurídica do instituto, que é de uma garantia (como o próprio nome aduz) real, prestada para que o imóvel responda pela dívida garantida, sendo justamente esta situação que a norma do art. 1º da Lei nº 8.009/90 busca alcançar e proteger.

Não bastasse isso, não se pode desprezar o fato de que, quando a Lei nº 8.009/90 foi publicada, o instituto da alienação fiduciária de bem imóvel sequer existia no Brasil, o que veio a ocorrer anos mais tarde, precisamente com a Lei nº 9.514/97.

Vale ressaltar, que é justamente para casos assim que ganha relevo a importância da interpretação pelos métodos teleológico e histórico-evolutivo, que deve ser feita à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção à família, da função social da propriedade e do direito à moradia, previstos, respectivamente, nos arts. 1º, III, 226, 5º, XXIII e 6º da CF.

Ademais, como é cediço, o direito à moradia ganhou status constitucional e fundamental somente pela EC 26/2000, ou seja, ele é posterior a ambas as leis. Logo, não se pode considerar como recepcionada pela EC 26/2000, a interpretação da Lei nº 8.009/90 que afaste a proteção legal ao bem de família alienado fiduciariamente em garantia tão somente em razão dos fundamentos expostos no primeiro parágrafo deste artigo, ou de qualquer outro fundamento que não leve em consideração a real finalidade do instituto protetivo.

Nesse sentido, recentemente, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 605.709/SP, o STF reconheceu que o inciso VII do art. 3º da Lei nº 8.009/90 não teria sido recepcionado pela EC 26/2000, no que tange à fiança prestada como garantia para contrato de aluguel comercial, senão veja-se:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO MANEJADO CONTRA ACÓRDÃO PUBLICADO EM 31.8.2005. INSUBMISSÃO À SISTEMÁTICA DA REPERCUSSÃO GERAL. PREMISSAS DISTINTAS DAS VERIFICADAS EM PRECEDENTES DESTA SUPREMA CORTE, QUE ABORDARAM GARANTIA FIDEJUSSÓRIA EM LOCAÇÃO RESIDENCIAL. CASO CONCRETO QUE ENVOLVE DÍVIDA DECORRENTE DE CONTRATO DE LOCAÇÃO DE IMÓVEL COMERCIAL. PENHORA DE BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR. INCOMPATIBILIDADE COM O DIREITO À MORADIA E COM O PRINCÍPIO DA ISONOMIA. 1. A dignidade da pessoa humana e a proteção à família exigem que se ponham ao abrigo da constrição e da alienação forçada determinados bens. É o que ocorre com o bem de família do fiador, destinado à sua moradia, cujo sacrifício não pode ser exigido a pretexto de satisfazer o crédito de locador de imóvel comercial ou de estimular a livre iniciativa. Interpretação do art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/1990 não recepcionada pela EC nº 26/2000. 2. A restrição do direito à moradia do fiador em contrato de locação comercial tampouco se justifica à luz do princípio da isonomia. Eventual bem de família de propriedade do locatário não se sujeitará à constrição e alienação forçada, para o fim de satisfazer valores devidos ao locador. Não se vislumbra justificativa para que o devedor principal, afiançado, goze de situação mais benéfica do que a conferida ao fiador, sobretudo porque tal disparidade de tratamento, ao contrário do que se verifica na locação de imóvel residencial, não se presta à promoção do próprio direito à moradia. 3. Premissas fáticas distintivas impedem a submissão do caso concreto, que envolve contrato de locação comercial, às mesmas balizas que orientaram a decisão proferida, por esta Suprema Corte, ao exame do tema nº 295 da repercussão geral, restrita aquela à análise da constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador em contrato de locação residencial. 4. Recurso extraordinário conhecido e provido.[3] (g.n.)

Com efeito, ao proferir seu voto no Recurso Especial nº 1.395.275/MG[4], o Ministro Luis Felipe Salomão corrobora a necessidade de conferir interpretação finalística ao instituto da proteção ao bem de família, ao consignar que De plano, há de se afastar a alegação de que o imóvel, por ser de propriedade do banco credor fiduciante, não poderia ser objeto de pleito para resguardo do bem familiar. […]

 Nessa ordem de ideias, o reconhecimento da proteção legal se submete à principiologia que deu ensejo à lei do bem de família. Como adverte o Ministro Luís Roberto Barroso, ‘o aplicador da norma infraconstitucional, dentre mais de uma interpretação possível, deverá buscar aquela que a compatibilize com a Constituição, ainda que não seja a que mais obviamente decorra de seu texto.’ […]

A leitura atenta da norma, […], deve se dar de forma mais abrangente, de forma a alcançar qualquer procedimento expropriatório (judicial ou extrajudicial) que venha a atingir um bem afetado como sendo de família. […]

Desta forma, não se podendo perder o norte finalístico do instituto, verifica-se que, independente da garantia real conferida, tanto numa hipótese como na outra, a razão de proteção deve ser a mesma, qual seja, a manutenção do bem de família que, pela sua gênese, não poderá ser objeto de expropriação” (g.n.).

Não há razões, portanto, para que o “bem de família” alienado fiduciariamente em garantia não receba a mesma proteção que recebe nos casos das demais garantias reais ou mesmo de execuções judiciais de títulos sem quaisquer garantias.

Nesse sentido, cumpre ressaltar que, ao recentemente julgar o Recurso Especial nº 1.559.348/DF[5], a 4ª Turma do STJ analisou a fundo a exceção de bem de família em caso de alienação fiduciária em garantia, porém, tendo rejeitado a tese pelo fundamento de que Sendo  a  alienante  pessoa  dotada  de  capacidade  civil,  que livremente  optou por dar seu único imóvel, residencial, em garantia a um  contrato  de  mútuo  favorecedor  de  pessoa diversa, empresa jurídica  da qual é única sócia, não se admite a proteção irrestrita do bem de família se esse amparo significar o alijamento da garantia após  o  inadimplemento  do débito, contrariando a ética e a boa-fé, indispensáveis em todas as relações negociais”.Como se pode constatar, assim como nos demais acórdãos citados, a proteção ao bem de família é rejeitada tão somente pelo fato de o alienante ser sócio da pessoa jurídica favorecida pela garantia e de ter sido demonstrado que foi beneficiado pelo valor decorrente do mútuo garantido pelo bem, o que difere da hipótese sob análise neste artigo e, portanto, autoriza o distinguishing.

De todo modo, o que merece destaque em relação ao acórdão do Recurso Especial nº 1.559.348/DF é o substancioso voto do Exmo. Ministro Marco Buzzi. Segundo o Ministro, “O recurso trata, portanto, da interpretação de normas relativas a instituto jurídico, bem de família, as quais se destinam a dar concretude ao princípio da dignidade da humana, seja no aspecto da proteção à família – considerada elemento nuclear da sociedade, conforme a Constituição Federal, – seja na forma de proteção do direito à moradia, garantindo, assim, um mínimo existencial ao indivíduo. […]

Tomando essa posição privilegiada do instituto como premissa de julgamento, a norma infraconstitucional deve ser interpretada de modo amplo quanto ao âmbito de sua proteção, mas de modo restrito quanto às exceções nela contidas. […]

Assim, a interpretação das normas relativas à concretização da dignidade humana e do direito à moradia devem ser interpretadas obedecendo a reserva legal, ou seja, os limites dados pelo Legislador, com autorização da Constituição. Ultrapassar os parâmetros impostos pela Lei para criar novas formas de restrição aos direitos fundamentais implica violação ao equilíbrio entre Poderes, incidindo em ativismo judicial do tipo negativo.

Conforme as premissas de interpretação já colocadas, por se tratar de norma destinada à proteção e efetivação dos direitos fundamentais, as hipóteses de exceção à impenhorabilidade do bem de família devem ser interpretadas restritivamente e nos limites da lei. […]

Conforme as informações contidas no feito, as autoras ofereceram em alienação fiduciária o imóvel que – sabidamente por todos os envolvidos – servia-lhes de residência. O negócio jurídico padece, portanto, no plano da validade, de vício congênito, o qual poderia ser conhecido por todos os contratantes, uma vez que as proprietárias não poderiam renunciar à proteção legal atribuída ao bem de família. […]

Não é razoável imaginar que a referida instituição, ligada à gestão de recursos econômicos, ao administrar o risco de seu próprio negócio, tenha deixado de levar em consideração a invalidade da alienação fiduciária ou, ao menos, a impossibilidade de levar a cabo a consolidação da propriedade.

Desse modo, certo é afirmar que a casa bancária estava plenamente ciente da inviabilidade parcial do ajuste que estava pactuando, destacadamente quanto à garantia que exigiu do mutuário, daí que absolutamente descabido presumir que tenha formulado justa expectativa sobre o cumprimento da avença que, sabidamente, ofendia o ordenamento jurídico, de forma que não está configurada a violação à boa-fé objetiva.

Por fim, não se vislumbra má-fé na alienação fiduciária do bem, seja porque não há prova nos autos de que a intenção das pessoas físicas fosse ludibriar a instituição financeira, seja porque a Cédula de Crédito tinha ainda outra garantia – a alienação fiduciária sobre os valores obtidos com as vendas realizadas por meio de pagamento com cartão de crédito -, de modo que tudo indica que as recorrentes pretendiam que o empréstimo fosse corretamente pago com recursos da própria pessoa jurídica.

Em conclusão, não é possível a consolidação da propriedade do imóvel em favor do credor, pois: (i) trata-se de bem de família, instituto que protege direitos fundamentais, de modo que as normas em questão devem ser interpretadas restritivamente, sendo vedado ao julgador criar novas hipótese de limitação da impenhorabilidade; (ii) a garantia real firmada entre as recorrentes e a instituição financeira não se ajusta a qualquer das exceções legais, devendo prevalecer a impenhorabilidade do imóvel, especialmente considerando que uma das proprietárias não é sócia da empresa mutuária; e (iii) não se verifica violação à boa-fé, subjetiva ou objetiva, uma vez que: (a) não restou demonstrado que o empréstimo contratado foi revertido em favor da entidade familiar, pelo contrário, fora utilizado como capital de giro da empresa; e (b) não está configurado o venire contra factum proprium no caso concreto”. (g.n.)

No mesmo sentido foi o voto do Ministro Raul Araújo que, ao acompanhar o voto do Ministro Marco Buzzi, deixou consignado que “[…] tenho sempre me posicionado pela prevalência da disposição legal que, a meu ver, coloca fora do comércio o bem de família. […]

Quem tem de compreender, ter a frieza e o profissionalismo de não aceitar esses bens como garantia, a meu ver, são os bancos, são as instituições credoras. Elas têm de perceber que, tratando-se de um bem de família, não lhe serve como garantia e aí não concede o crédito, o empréstimo, salvo nas estritas hipóteses previstas como exceção na própria lei(g.n.).

Impor essa responsabilidade às instituições financeiras, tal como fizeram os Ministros Marco Buzzi e Raul Araújo nos referidos votos, nada mais é do que reconhecer a eficácia horizontal dos direitos fundamentais que, de acordo com o entendimento praticamente unânime da doutrina e das Cortes Supremas de países da Civil Law e da Common Law, deve incidir em casos como o da hipótese aqui tratada, em que há enorme assimetria de poder entre as partes. Isso porque, quanto maior a assimetria de poder, menor será o campo de atuação da autonomia privada da parte menos favorecida.

Por fim, para reforçar a ideia da responsabilidade que recai sobre a instituição financeira ao aceitar um bem de família como garantia (seja alienação fiduciária ou hipoteca) e de que, nestes casos, cabe ao Poder Judiciário interferir, recorre-se aos ensinamentos de Daniel Sarmento[6], um dos maiores estudiosos das teorias de vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, quando ele aponta duas premissas que devem ser levadas em consideração quando em jogo relações privadas envolvendo direitos fundamentais. A primeira delas, também compartilhada por Eduardo Cambi[7] e Juan Maria Bilbao Ubillos[8], orienta que, quanto maior for a desigualdade entre as partes, mais intensa deve ser a proteção ao direito fundamental afetado, e menor a tutela da autonomia privada. Ao contrário, nas relações paritárias, a autonomia privada é que vai receber uma proteção mais intensa e o direito fundamental que com ela colidir poderá receber restrições mais profundas. A “segunda premissa”, específica ao campo das relações econômicas, está relacionada à essencialidade do bem em discussão na relação jurídica. Quanto mais essencial o bem for para a vida humana, maior será a proteção do direito fundamental em jogo e menor a tutela da autonomia privada. Inversamente, quando o bem puder ser qualificado como supérfluo, a proteção da autonomia privada será maior e, consequentemente, menos intensa será a proteção do direito fundamental contraposto. Portanto, pode-se afirmar que o peso da autonomia privada em uma ponderação de interesses varia não só de acordo com a assimetria de poder entre as partes, mas também em razão da natureza dos bens em jogo.

Conclui-se, portanto, que, estando demonstrado que a proteção legal ao bem de família pode alcançar também o imóvel alienado fiduciariamente em garantia, a análise da eventual nulidade da cláusula que institui a referida garantia fiduciária deve ser realizada à luz da jurisprudência dominante do STJ para os casos de hipoteca, no sentido de que “Não se admite a renúncia à proteção conferida ao bem de família quando caracterizado que a garantia prestada à pessoa jurídica em operação bancária não promoveu benefício em prol da pessoa física garantidora”.[9] Este entendimento, inclusive, foi recentemente adotado pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, quando do julgamento do Recurso de Apelação nº 0018193-67.2013.8.24.0033.

 

[1] REsp 1560562/SC, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 02/04/2019, DJe 04/04/2019.

[2] REsp 1677015/SP, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 28/08/2018, DJe 06/09/2018. Ressalta-se que, neste julgado, restaram vencidos os Ministros Ricardo Villas Boas Cueva e Paulo de Tarso Sanseverino, que votaram pela proteção ao bem de família, mesmo se tratando de alienação fiduciária.

[3] STF, RE 605709, Relator: Dias Toffoli, Relatora p/ Acórdão: Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 12/06/2018, acórdão eletrônico DJe-032, divulgado em  15-02-2019, publicado em 18-02-2019.

[4] REsp 1395275/MG, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Rel. p/ Acórdão Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 22/04/2014, DJe 20/08/2014

[5] REsp 1559348/DF, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 18/06/2019, DJe 05/08/2019.

[6] SARMENTO, Daniel. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no direito comparado e no Brasil. In: BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 3. ed. rev. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 272; 278-279.

[7] CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neopositivismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo Judiciário. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2011, p. 36-37.

[8] BILBAO UBILLOS, Juan María. La eficacia de los derechos fundamentales frente a particulares: analisis de la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1997, p. 368-369.

[9] AgRg no AREsp 98.992/SC, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 25/02/2014, DJe 06/03/2014.

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