Notícias

Artigos e publicações periódicas

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BENS IMÓVEIS: O QUE OCORRE E O QUE DEVE OCORRER QUANDO OS DOIS LEILÕES EXTRAJUDICIAIS SÃO INEXITOSOS.

Compartilhe:

Facebook
Twitter
LinkedIn

Por Hélio Ricardo Diniz Krebs – Presidente da Comissão de Direito Bancário do IASC.

 

O instituto da alienação fiduciária de bens imóveis foi instituído no Brasil pela Lei nº 9.514/97. Embora já tenha se passado mais de duas décadas desde então, o tema trata-se de fonte quase inesgotável de controvérsias jurídicas, instauradas especialmente em razão de sua complexidade e dos benefícios irrazoáveis e desproporcionais que a aplicação fria – e, em alguns casos, descuidada – da lei traz aos detentores do crédito, em detrimento da coletividade.

Não é exagero afirmar que, sob a influência da grave crise econômica que atinge o país nos últimos anos, o Brasil passa por verdadeira crise da execução extrajudicial da alienação fiduciária, que foi agravada seriamente pela expressiva alta do índice do CDI – que, ao lado de juros remuneratórios em patamar elevado, remunera ilegalmente os contratos de diversas instituições financeiras – nos anos de 2014, 2015 e 2016.

A complexidade da matéria e os danos decorrentes dos abusos cometidos pelas instituições financeiras em sua aplicação permite que se trace um paralelo com a crise da execução extrajudicial hipotecária nos Estados Unidos, uma vez que, como adverte Umberto Bara Bresolin, “E se o largo emprego recente de execuções extrajudiciais hipotecárias rendeu notícias de irregularidades e abusos, proporcionou, de outro lado, profícuos estudos, sugestões de aperfeiçoamento da execução e reformas legislativas […]”.[1]

Noticia o autor que, “No final do ano de 2010, uma força-tarefa promovida por procuradores-gerais de diversos Estados passou a investigar denúncias de irregularidades e abusos cometidos nas execuções hipotecárias, especialmente em razão da negligência no exame de documentos comprobatórios da dívida e da constituição da garantia hipotecária, de vícios na comunicação do devedor para saldar sua dívida e de cobrança de valores indevidos (cf. notícia CONSULTOR JURÍDICO, Força-tarefa nos EUA investiga execuções hipotecárias […]). No início de 2012, as investigações culminaram em acordo celebrado perante o Departamento de Justiça dos Estados Unidos da América, por força do qual cinco bancos de grande porte – Bank of America, Wells Fargo, JPMorgan, Citigroup e Ally Financial – comprometeram-se a disponibilizar até US$ 25 bilhões para indenizar devedores que perderam suas residências em execuções hipotecárias. […] para os Bancos, o objetivo é o de que o acordo evite questionamentos judiciais sobre supostas irregularidades (cf. notícia UOU NOTÍCIAS, EUA firmam acordo de US$ 25 bi com bancos por abusos em hipotecas)”.[2]

Em outras palavras, o que se pretende demonstrar, com tais constatações, é que esse ambiente de crise da execução extrajudicial – e não apenas econômica – é propício para que os Poderes Legislativo e Judiciário revisitem a lei, a jurisprudência, e seus dogmas, dispensando maior atenção às inconstitucionalidades da Lei nº 9.514/97, bem como às inconstitucionalidades e controvérsias ocasionadas pela sua aplicação, sem os olhos voltados à Constituição.

Neste breve estudo, contudo, pretende-se abordar apenas uma dessas controvérsias, que diz respeito ao que vem ocorrendo e ao que deve ocorrer, de fato, quando os dois leilões previstos no art. 27 da Lei nº 9.514/97 são negativos.

Pois bem. No primeiro leilão, o bem deve ser vendido, no mínimo, pelo valor da avaliação do imóvel (estabelecido de acordo com o art. 24, VI e parágrafo único, da Lei nº 9.514/97), sendo que, eventual saldo credor, depois de abatidas a dívida remanescente e as despesas previstas nos §§ 2º e 3º do art. 27 da Lei nº 9.514/97, deve ser restituído ao devedor fiduciante.

Não havendo arrematação no primeiro leilão, deverá ser realizado o segundo leilão, em que, nos termos do § 2º do art. 27 da Lei nº 9.514/97, “[…] será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais”.

Como se percebe facilmente, trata-se de dispositivo de lei que propicia a ocorrência de situações extremamente irrazoáveis e desproporcionais. Para ilustrar ao menos uma dessas situações, narra-se a seguinte situação hipotética: sem considerar os juros incidentes sobre as parcelas – a fim de simplificar a compreensão -, imagine-se uma dívida de R$ 4.000.000,00 (quatro milhões de reais), garantida por meio de alienação fiduciária de um imóvel avaliado em R$ 4.500.000,00 (quatro milhões e quinhentos mil reais), em que o devedor fiduciante adimpliu R$ 3.800.000,00 (três milhões e oitocentos mil reais), de modo que o saldo devedor da dívida em aberto, portanto, está em R$ 200.000,00 (duzentos mil reais).

Assim, um imóvel avaliado em R$ 4.500.000,00 (quatro milhões e quinhentos mil reais) poderá ser vendido até mesmo por pouco mais de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), considerando-se o saldo devedor mais as despesas dos §§ 2º e 3º do art. 27.

O devedor fiduciante, por sua vez, perderia todas as parcelas que pagou (quase a totalidade da dívida) e mais o imóvel, cujo valor, por si só, já supera o do capital mutuado. Não é por outra razão que Manoel Justino Bezerra Filho[3], inclusive propondo alteração nos §§ 2º e 5º do art. 27 da Lei nº 9.514/97, defende que o valor mínimo para expropriação seja igual ou superior a 75% do valor do imóvel mais as despesas, prêmios de seguros, cotas condominiais e encargos legais, inclusive tributos.

Portanto, resta claro que se trata de procedimento que jamais poderia ter adentrado no ordenamento jurídico de um país que se intitula um Estado de Direito Democrático. Suas implicações no campo da inconstitucionalidade[4], no entanto, serão tratadas em outra oportunidade.

O presente estudo, como já dito, se encarrega de analisar a terceira hipótese prevista pelo art. 27 da Lei nº 9.514/97, que é aquela que ocorre quando, depois do segundo leilão, sendo este negativo, o credor fiduciário adjudica o bem e, posteriormente, o vende pelo meio e valor que melhor lhe aprouver. Nesta situação, o que vem ocorrendo na prática é a manutenção do valor auferido com a venda em mãos do credor fiduciário, além daqueles que já foram pagos pelo devedor, que perde o bem e tudo quanto pagou, conforme já enfatizado.

Ocorre que, embora seja essa a situação com a qual os devedores usualmente se deparam e, muitas vezes, se conformam, a correta interpretação dos §§ 4º e 5º do art. 27 da Lei nº 9.514/97 determina providência diversa. É o que se passa a demonstrar.

Na hipótese de o objeto de alienação fiduciária não ser vendido nos 2 (dois) leilões extrajudiciais previstos no art. 27 da Lei nº 9.514/97 e, por consequência, serem adjudicados (consolidados definitivamente no patrimônio da credora fiduciária), o devedor fiduciante tem o direito a ser ressarcido na quantia referente à diferença entre o valor de avaliação do imóvel e o saldo devedor da respectiva dívida.[5]

Explica-se. Embora as instituições financeiras não venham adotando esse procedimento de forma espontânea, o aludido dever de ressarcimento decorre, em especial, do fato de que a dispensa de prestação/encontro de contas prevista no § 5º do art. 27 da Lei nº 9.514/97, não se aplica na hipótese de o segundo leilão restar inexitoso, até mesmo porque ofenderia o disposto nos arts. 413 (princípio de equidade) e 884 (vedação ao enriquecimento indevido) do CC.

Além disso, a tese aqui defendida encontra guarida tanto no art. 1.428 do Código Civil (aplicável aos contratos regidos pela Lei nº 9.514/97, por força do art. 1.367 do CC), segundo o qual “É nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético ou hipotecário a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento”, como também no art. 53 do CDC, in verbis: “Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.[6]

Nesse sentido, Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe asseveram que “Inexiste, é certo, no caso de leilões negativos, previsão na Lei do SFI (§ 5º do art. 27) que obrigue o credor (ao considerar a dívida extinta) a restituir ao financiado quaisquer prestações pagas; o texto legal até pode induzir a considerar-se exonerado o credor da obrigação de restituição do que sobejar, de que trata o § 4º do art. 27. Aliás, esse § 4º fala em ‘recíproca quitação’ quando não sobejar do eventual exitoso leilão valor que deva ser entregue pelo credor efetivamente ao devedor, sem considerar outros aspectos subjacentes.

Restando o imóvel em definitivo com o credor fiduciário, à falta de lance útil – isto é, igual ou superior ao valor da dívida – no segundo leilão (§§ 5º e 6] do art. 27), só a quitação extintiva da dívida pode não esgotar a solução de ordem pública prevista no Código de Defesa do Consumidor 9art. 53) e de equidade no Código Civil (art. 413 do CC de 2002). […]

É ambígua numa determinada eventualidade a solução constante da lei, de exonerar o credor da obrigação de que trata o § 4º do art. 27; quando ocorre sobejo em primeiro leilão, positivo, é porque resultou da apuração da soma do montante das parcelas pagas na vigência do contrato e da plusvalia do imóvel por acessões ou/e benfeitorias. Por que, então, no segundo leilão, negativo, que implica extinção da dívida (§ 5º do art. 27), não haveria computação das parcelas pagas, mas, sim, perda total do imóvel, mais pagamentos feitos e benfeitorias e acessões, sem qualquer cogitação de cálculo? O devedor ficaria dependendo somente da eventualidade de êxito na arrematação, realizada fora do seu poder de controle, para surgir a apuração de contas e só então ter computadas a seu crédito as parcelas pagas? A interpretação integrativa da lei complexa deve ser congruente, e jamais contra o consumidor aderente. […]

Os leilões, na realidade, podem ter três resultados: havendo eventualmente sobejo ou empate no primeiro leilão, o imóvel vai para o lançador e devem ser apresentadas as apurações (§ 4º do art. 27); não alcançando lance mínimo (valor do imóvel), não se efetiva a arrematação no primeiro leilão; e o imóvel, depois do segundo leilão, se negativo, fica com o credor (claro que pelo valor de referência previsto no inciso VI do art. 24 – valor do imóvel); se positivo, mas deficitário, o risco pela arrematação aceita será do credor (§ 5º do art. 27).

Não se referiu a lei à devolução de eventual excesso ao valor do crédito, se negativo ou deficitário o segundo leilão. O problema é crítico nestas últimas hipóteses (segundo leilão negativo ou deficitário), em que a lei não cogita de cálculos, encontro de contas ou posicionamento de valores, mas também não avilta o direito natural do devedor à circunstancial restituição de excesso, nem contempla o credor com enriquecimento sem causa na eventualidade de sobejamento ao crédito. O referencial para cálculo nas duas últimas hipóteses volta a ser o valor do imóvel, na relação devedor/credor – o que nada tem a ver com os critérios arbitrários para aceitação de lance inferior de terceiro. […]

Não havendo arrematação do imóvel, este incorpora-se ao patrimônio do credor, e seu valor, objetivamente previsto nos termos do inciso VI do art. 24, é que deverá figurar como receita a crédito do devedor, parcela computável juntamente com as prestações pagas da dívida; se por esse critério o saldo final for negativo, a dívida se extingue ex lege; mas se for positivo, deverá ser restituído pelo credor ao devedor o que sobejar.

É ônus do credor, ou risco da atividade econômica decorrente do sistema, ‘renunciar’ ex lege ao crédito residual (considerada extinta a dívida) e dar quitação ao devedor (§§ 6º e 7º do art. 27); mas não está implícita a recíproca nessa norma, de que o ex-devedor (quitado) tenha o ônus da contrapartida, de também renunciar a eventual crédito que pudesse resultar em seu favor do encontro de contas quando o segundo leilão seja negativo e o imóvel reste definitivamente incorporado ao patrimônio do ex-credor e ex-fiduciário (atual proprietário pleno e perfeito). […]

Daí ser cabível, sempre, a apuração completa de valores, em qualquer situação pós-leilões. A extinção ex lege da dívida do fiduciante não tem como recíproca a extinção ex lege do seu direito a receber eventual sobejamento: nem devolução total, nem perda total; só devolução parcial do eventual sobejo apurado”.[7]

Com efeito, a restituição da diferença entre o valor de avaliação do imóvel e o eventual saldo devedor pode ser buscada tanto por ação autônoma, como em defesa em sede de ação de reintegração ou imissão de posse proposta pelo credor fiduciário, de modo que a reintegração ou imissão na posse ficaria condicionada ao efetivo pagamento da referida diferença.

Essa tese vem sendo reiteradamente encampada pelo TJSP, senão veja-se:

APELAÇÃO. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ATOS JURÍDICOS. BEM IMÓVEL DADO EM GARANTIA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. […] Com a reintegração da posse do bem e consolidação no patrimônio da ré o imóvel foi adjudicado pelo agente fiduciante. Valor a ser restituído ao devedor deve limitar-se ao correspondente à diferença entre o valor de avaliação do imóvel e o valor do crédito garantido, ambos atualizados monetariamente, em fase de liquidação. […].[8]

Frise-se que, esse acórdão foi mantido pelo STJ, quando do julgamento do Recurso Especial nº 1.416.245/SP, interposto pelo então credor fiduciário, oportunidade na qual o Relator, Min. Moura Ribeiro, deixou consignado o seguinte:

“Importante destacar que o Tribunal de origem, quando do julgamento dos recursos de apelação interpostos por ambas as partes, somente tratou do tema da adjudicação do bem pelo credor fiduciário em razão da ausência de licitantes no segundo leilão e da necessária restituição dos valores por ele recebidos.

Nesse ponto, assim se manifestou:

‘Promovidos os leilões públicos para alienação do imóvel, não houve interessados, possibilitando a adjudicação do bem, que é considerada legal e válida. […]

Os leilões realizados para a venda do bem, objeto da presente ação não encontraram licitantes. O credor fiduciário, então, adjudicou para si o imóvel.

Logo, não se pode falar em total improcedência do feito, mas em valor a ser restituído neste caso, que não será o das parcelas pagas, diminuído percentual a titulo de perdas e danos, mas sim o da diferença existente entre o valor da avaliação do imóvel devidamente atualizado e o valor do crédito existente, também atualizado e acrescidos dos encargos legais e contratuais, que deverá ser aprovado em liquidação de sentença’”.

Corroborando a tese aqui defendida, o Exmo. Min. Moura Ribeiro arremata que “Ainda que assim não fosse, o art. 27, §§ 4º e 5º da Lei nº 9.514/97, não ampara a pretensão recursal, uma vez que ele não trata das hipóteses de ausência de arrematação ou da adjudicação do bem pelo credor, como quer fazer crer a BRAZILIAN, mas sim de sua arrematação, em segundo leilão, por preço menor do que aquele previsto pelo § 2º, do mesmo artigo, qual seja, valor inferior ao total do débito, já englobado o valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais”. (g.n.)

No mesmo sentido, veja-se o acórdão da Apelação Cível nº 0182593-13.2008.8.26.0100, do TJSP:

Alienação fiduciária. Bem imóvel. Constituição em mora regular. Observância do art. 26, §1º, da Lei n. 9.514/97. Leilão extrajudicial de imóvel. Admissibilidade. […]. Ausência de licitantes interessados após a realização do segundo leilão. Adjudicação do bem em favor da credora fiduciária. Inaplicabilidade do §5º do art. 27 da Lei n. 9.514/97. Dever de entregar ao devedor a importância que superar o valor do débito. Restituição ao apelante da diferença entre o valor de avaliação do bem que foi adjudicado pela apelada e o valor de seu crédito, ambos devidamente atualizados […]. Sucumbência recíproca. Recurso parcialmente provido.[9] (g.n.)

Do corpo do acórdão extrai-se a assertiva no sentido de que “[…] cumpre à apelada restituir ao autor a diferença entre o valor de avaliação do bem que foi adjudicado pela apelada e o valor de seu crédito, ambos devidamente atualizados, o que deverá ser apurado em liquidação de sentença. As parcelas adimplidas pelo apelante serão aproveitadas para o abatimento do valor de seu débito em face da apelada.

Note-se, apenas para reforçar a existência de crédito em favor do apelante, que o cálculo apresentado pela apelada, credora fiduciária, indicava que o valor de seu crédito correspondia a R$ 394.935,81, em junho de 2008 (fs. 193). Ao mesmo tempo, o imóvel que serviu de garantia foi avaliado em R$ 427.381,04 em agosto de 2008, conforme se extrai do valor mínimo da primeira praça (fs. 195)”.

Ao julgar o recurso de apelação nº 9300853-02.2008.8.26.0000[10], em que se tratava de ação de reintegração de posse proposta pelo credor fiduciário em face do devedor fiduciante, o TJSP traz fundamentos objetivos e esclarecedores sobre a matéria, ao consignar que, “Os leilões realizados para a venda do bem, objeto da presente ação, apesar de observadas todas as formalidades previstas, não encontrou licitantes. O credor fiduciário, então, adjudicou para si o imóvel.

Logo, o valor a ser restituído neste caso, não é o das parcelas pagas, diminuído percentual a título de perdas e danos, mas sim a diferença existente entre o valor da avaliação do imóvel devidamente atualizado e o valor do crédito existente, também atualizado e acrescidos dos encargos legais e contratuais, que deverá ser realizado em liquidação de sentença”.

Esse entendimento também vem sendo adotado pelo TJRS que, ao julgar o recurso de apelação nº 70074687039, decidiu que, “Constatada a regularidade do procedimento extrajudicial, deve ser acolhido o pedido de reintegração de posse, devendo o credor providenciar o pagamento à devedora da diferença entre o valor da avaliação do imóvel pelo perito judicial e a dívida […]”.[11]

Com efeito, embora tratando da execução extrajudicial regida pelo Decreto-lei 70/66 (muito semelhante à execução extrajudicial da Lei nº 9.514/97), o STJ, há muito, já vem adotando entendimento que corrobora a tese de que, não havendo êxito nos leilões extrajudiciais, o imóvel é adjudicado pelo credor que, contudo, deverá restituir o mutuário pela quantia correspondente à diferença entre o valor do imóvel e o saldo devedor da dívida, acrescido dos encargos e despesas com a realização do leilão, sob pena de proporcionar o enriquecimento indevido do credor.

Ao julgar o Recurso Especial nº 1.124.362/SP[12], o STJ deixa consignada a seguinte lição, extraída da fundamentação do v. acórdão: “Ora, se necessária se faz a avaliação do bem no seio da execução, seja no CPC, seja na Lei 5.741, ou mesmo no DL 70⁄66, para que, quando da venda judicial ou extrajudicial, possa o bem ser ofertado com base em seu valor real, e, assim, por terceiro arrematado, por que não preservar, quando da adjudicação, o mesmo interesse que é preservado quando da arrematação?

Superando o valor do bem excutido o dos débitos, impende reconhecer ao devedor o direito de receber o que eventualmente sobejar, sob pena de, para se solver a dívida, o credor, adjudicando o bem, fique com as prestações até então adimplidas e, ainda, com o preço obtido com a eventual venda do imóvel adjudicado, percebendo dupla vantagem e remanescendo, o mutuário, sem o imóvel e sem o quanto até então repassou ao mutuante. […]

Note-se que, no momento da contratação do financiamento, o valor do imóvel é necessariamente igual ou superior ao da dívida assumida perante a instituição financeira. […]

O dispositivo em questão, ao prever que o saldo devedor ficará quitado com a adjudicação pelo credor do imóvel, guarda razão no fato de o adjudicante restar com o imóvel que era garantia inicial (hipotecária) do mútuo entabulado, podendo vendê-lo para terceiros e, com isso, reaver o capital inicialmente emprestado.

Da fórmula legal, extrai-se que o mutuário que adimplira, por longos anos, o financiamento e, por fatores que agora não pertine aventar, não mais lograra adimpli-lo, ficará sem a dívida, mas, também, sem a razão pela qual foi ela contraída, ou seja, o imóvel.

Já no caso de o financiamento ter sido adimplido à quase totalidade, de forma a que o saldo devedor se mostre inferior ao valor do bem adjudicado, dever-se-á devolver ao mutuário o que sobejar, já que o mutuante restará com o imóvel, podendo ainda, assim como na outra hipótese, ressarcir-se do saldo devedor com a venda do bem objeto de adjudicação.

Sem tal providência, vislumbra-se a caracterização do enriquecimento sem causa do mutuante, o que sempre foi vedado em nosso ordenamento jurídico, sendo atualmente regra expressa do Código Civil de 2002 (art. 884) […].

De outro lado, o agente financeiro restará com o imóvel, apto a ser novamente vendido, além dos valores pelo mutuário a ele alcançados até quando do início da mora.

Do presente tema não descurou o ilustre Arnaldo Rizzardo (op. cit., p. 218), destacando as injustiças que poderiam advir da assunção da adjudicação pelo valor do saldo devedor e consignando textualmente o seguinte:

 ‘Para evitá-las (esclareço: as injustiças) torna-se indispensável a avaliação, com o que serão impedidas hipóteses de enriquecimento ilícito por uma das partes ou pelo arrematante (art. 884 do CC⁄2002)’.”

O mesmo entendimento voltou a ser recentemente adotado pelo STJ, em decisão do Min. Paulo de Tarso Sanseverino no Recurso Especial nº 1.461.516/RS[13], que, também tratando da execução extrajudicial do Decreto-lei 70/66, consolida o entendimento no sentido de que “[…] necessária se faz a avaliação do bem no seio da execução, seja no CPC, seja na Lei 5.741, ou mesmo no DL 70⁄66, para que, quando da venda judicial ou extrajudicial, possa o bem ser ofertado com base em seu valor real, revela-se, do mesmo modo, importante a correta liquidação do saldo devedor, cotejando-o ao valor da avaliação e, daí, concluir-se pela existência ou não de saldo positivo em favor do executado”.

No TJSC, que poucas vezes se debruçou sobre o tema, encontra-se ao menos um julgado tratando da execução hipotecária regida pela Lei nº 5.741/71, em que restou consignado ser “[…] justa, neste caso, a apropriação pelo executado da diferença favorável entre o valor da dívida e do imóvel, pois a mais-valia integra seu patrimônio e cabe restituí-la”.[14]

Com efeito, a tese aqui defendida se encontra em consonância: a) com a interpretação sistemática à luz do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil (arts. 413, 421 e 884); e b) com a interpretação conforme a Constituição, cabível na análise conjunta dos §§ 1º, 2º, 3º, 4º e 5º do art. 27 da Lei nº 9.514/97, sob a ótica dos postulados da razoabilidade e da proporcionalidade, dos direitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, do devido processo legal, da moradia, da propriedade e sua função social, da proteção ao consumidor, bem como dos princípios que regem a ordem financeira e econômica, previstos nos arts. 1º, III, 5º, XXII, XXIII, XXXIII, LIV, 6º e 170, II, III e V da CF.

Sobre a interpretação conforme a Constituição, Alexandre de Moraes ensina que “A supremacia das normas constitucionais no ordenamento jurídico e a presunção de constitucionalidade das leis e atos normativos editados pelo poder público competente exigem que, na função hermenêutica de interpretação do ordenamento jurídico, seja sempre concedida preferência ao sentido da norma que seja adequado à Constituição Federal”.[15]

Conclui-se, portanto, que, na hipótese de serem realizados e restarem negativos os 2 (dois) leilões extrajudiciais previstos no art. 27 da Lei nº 9.514/97 e, por consequência, ser o imóvel adjudicado pelo credor fiduciário, este deverá ressarcir o devedor fiduciante na quantia referente à diferença entre o valor de avaliação dos imóveis e o saldo devedor da respectiva dívida.

[1] BRESOLIN, Umberto Bara. Execução extrajudicial imobiliária: aspectos práticos. São Paulo: 2013, p. 71.

[2] BRESOLIN, Umberto Bara. Execução extrajudicial imobiliária: aspectos práticos. São Paulo: 2013, p. 71.

[3] BEZERRA FILHO, Manoel Justino. A execução extrajudicial do contrato de alienação fiduciária de bem imóvel – exame critico da Lei 9.514, de 20.11.1997, in Revista dos Tribunais, nº 819, 2004, p. 75-76.

[4] Ressalta-se que, no dia 08/02/2018, foi publicado o v. acórdão que concluiu pela existência de Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 860.631/SP, que tem como objeto a “Discussão relativa à constitucionalidade do procedimento de execução extrajudicial nos contratos de mútuo com alienação fiduciária de imóvel, pelo Sistema Financeiro Imobiliário – SFI, conforme previsto na Lei n. 9.514/1997”, tratado agora como Tema 982 na Corte Suprema. Digno de nota, também, o fato de que, embora a constitucionalidade da execução extrajudicial do Decreto-lei 70/66 tenha sido, no passado, por vezes afirmada pelo STF, essa questão também teve a repercussão geral reconhecida no Recurso Extraordinário nº 627.106 (Tema 249), que se encontra com vista para o Min. Gilmar Mendes desde 18/08/2011, mas já tendo votado pela sua inconstitucionalidade os Ministros Luiz Fux, Carmen Lúcia e Ayres Britto, o que demonstra a probabilidade de a Corte Suprema vir a considerar inconstitucional também a execução extrajudicial regida pela Lei nº 9.514/97.

[5] Tendo em vista a situação teratológica e irrazoável que pode restar configurada com a venda do imóvel, no segundo leilão, até pelo valor da dívida (tal como no exemplo citado, em que um imóvel avaliado em R$ 4.500.000,00 pode ser vendido por pouco mais de R$ 200.000,00), o autor entende que, também nestes casos, o credor fiduciário deverá ressarcir o devedor na quantia correspondente à diferença entre o valor do imóvel e o valor do saldo devedor.

[6] Ressalta-se que, o art. 53 do CDC vem sendo comumente afastado pelos tribunais pátrios, sob o fundamento de que a Lei nº 9.514/97 é especial e posterior ao CDC.

 

[7] RESTIFFE NETO, Paulo; RESTIFFE, Paulo Sérgio. Propriedade fiduciária imóvel. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 115-116; 170.

[8] TJSP,  Apelação nº 9083312-37.2008.8.26.0000, Rel.: Hugo Crepaldi, Órgão Julgador: 25ª Câmara de Direito Privado, Foro Central Cível – 8ª Vara Cível, Data do Julgamento: 20/06/2012; Data de Registro: 21/06/2012.

[9] TJSP,  Apelação nº 0182593-13.2008.8.26.0100; Rel.: Hamid Bdine, Órgão Julgador: 29ª Câmara de Direito Privado, Foro Central Cível – 18ª Vara Cível, Data do Julgamento: 25/06/2014; Data de Registro: 25/06/2014.

[10] TJSP,  Apelação nº 9300853-02.2008.8.26.0000, Rel. Hugo Crepaldi, Órgão Julgador: 25ª Câmara de Direito Privado;,Foro Regional XI – Pinheiros – 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 18/04/2012; Data de Registro: 20/04/2012.

[11] TJRS, Apelação Cível nº 70074687039, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Gelson Rolim Stocker, Julgado em 19/10/2017.

[12] STJ, REsp 1124362/SP, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 15/12/2011, DJe 21/05/2012.

[13] STJ, REsp nº 1461516/RS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 14/06/2016, DJe 21/06/2016.

[14] TJSC, Agravo de Instrumento n. 0153772-18.2015.8.24.0000, da Capital, rel. Des. Altamiro de Oliveira, Quarta Câmara de Direito Comercial, j. 04-10-2016.

[15] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15 ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 47.

Foto meramente ilustrativa.

Compartilhe:

Facebook
Twitter
LinkedIn

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Leia Também